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domingo, 26 de dezembro de 2010

Direito Sanitário- Por Sueli Gandolfi Dallari

DIREITO SANITÁRIO


Conceito de saúde pública



A evolução histórica mostra que o atual conceito de saúde pública começa a se delinear no Renascimento, correspondendo praticamente ao desenvolvimento do Estado Moderno. É muito curioso – porque absolutamente desprezado – verificar a aproximação histórica da idéia de saúde daquela de exercício físico (ginástica) e dieta, isso porque a saúde não é originalmente um conceito científico, mas uma idéia comum, ao alcance de todos.
Para a antigüidade grega o termo hygieia significa “o estado daquele que está bem na vida” e tem um sentido eminentemente positivo. Mesmo com a incorporação do sentido de cura e, portanto, com a formação da medicina, ainda a higiene alimentar e o exercício físico são caracterizados como importantes elementos de cura. Platão alarga um pouco mais a idéia de saúde acrescentando-lhe o campo da alma e a necessidade de que ele mantenha relação adequada com o corpo. Assim, o estado de equilíbrio interno do homem e dele com a organização social e a natureza é sinônimo de saúde para a antigüidade grega. Durante a Idade Média, o saber culto continua a privilegiar o equilíbrio na definição de saúde, tratados de ginástica e dietética são publicados como receitas de saúde para os não-médicos, mas a reação coletiva à epidemia é a imagem mais marcante desse período. Assim aparecem os primeiros contornos da idéia de prevenção, implicando o respeito seja aos signos do zodíaco, seja ao desenrolar das estações, seja ao relacionamento adequado entre o clima e o corpo humano, mas, sobretudo, o afastamento dos contactos impuros – a melhor forma de prevenção.
No Renascimento, um fato importante para a compreensão do conceito de saúde pública foi a preocupação das cidades em prestar cuidados aos doentes pobres em seus domicílios ou em hospitais, aumentando o poder das cidades em matéria de higiene. Por outro lado, novas concepções de saúde favorecem a limpeza e os exercícios corporais que evitam o recurso aos medicamentos, enquanto outras tendem a mecanizar o corpo, trabalhando com um conjunto de fatores que constituem a saúde (eliminação dos resíduos, apetite, facilidade de digestão). E a valorização do exercício.A medicina hipocrática é formada pela dietética ou ciência dos regimes e pela ginástica ou ciência dos
exercícios.Como elemento essencial para uma vida saudável encontra reforço no romantismo, que estimula maior aproximação da natureza. Entretanto, a experiência das epidemias deixou sua marca, elaborando o conceito de perigo social, “usado mais como pretexto para um controle sobre as pessoas e não somente sobre as doenças do que para medidas específicas de prevenção”. É nesse período que, na Alemanha, se define a idéia de polícia médica, em plena coerência com o cameralismo. Não tendo os alemães participado ativamente das grandes navegações e da colonização decorrente, o principal objetivo do mercantilismo foi aumentar a força interna do Estado - particularmente depois que o império germânico foi esfacelado nos Tratados de Paz da Westphalia (1648) - para o que foi importante o conceito de polícia. Concordando com a ideologia hegemônica na Alemanha no final do século XVII, que afirmava ser o crescimento populacional a manifestação primeira da prosperidade e bem-estar de um povo e que, portanto, um bom governo deve agir para proteger a saúde de seus súditos, Leibnitz sugeriu, em 1680, ao imperador Leopoldo I, a criação de um órgão administrativo encarregado dos assuntos de polícia, o que implicava a existência de um conselho de saúde. Logo após (1685), Frederico-Guilherme de Hohenzollern – o Grande Eleitor de Brandenburgo – cria, nos territórios que viriam a constituir o reino da Prússia, um Collegium sanitatis, definindo uma autoridade médica para supervisionar a saúde pública.
Nesse período pode-se observar, também, que o ensino do cameralismo na Universidade – iniciado sob o reinado do, então, imperador Frederico-Guilherme I – favorecendo o desenvolvimento do ramo da Administração Pública conhecido como ciência da polícia, forneceu as bases para a definição da polícia médica, a ele estruturalmente vinculada. Assim, a teoria política do contratualista barão de Pufendorf – revelada no Direito natural e direito das gentes, de 1672 – além de insistir em que “a força de um Estado consiste no valor e nas riquezas dos Cidadãos: ..(e que o Soberano, portanto,).. não deve nada negligenciar, para promover o cuidado e o aumento dos bens dos particulares”, dedica um capítulo a “Os deveres do homem com relação a ele mesmo, tanto para o que respeita ao cuidado de sua alma, quanto para aquilo que concerne ao cuidado de seu corpo e de sua vida”. Nesse trecho ele afirma ser necessário “trabalhar para ter a saúde com bom senso”, lembrando que a saúde encerra todos os outros bens. E seus seguidores, como von Justi, escrevendo no auge do despotismo esclarecido (exercido na Alemanha por Frederico II41), advogavam que o soberano fizesse todo o possível para prevenir as doenças contagiosas e para, em geral, diminuir as doenças entre os súditos. Para isso deveria, empregando o aparato administrativo do Estado, estimular a prática da medicina, da cirurgia, do partejo, da farmácia e regulamentar o exercício dessas atividades para evitar abusos e o charlatanismo. Deveria, também, promover a pureza da água e dos alimentos, assim ensinam os historiadores da civilização que o mercantilismo alemão, interessado sobretudo em aumentar as rendas do Estado, ficou conhecido como “cameralismo”, uma vez que Kammer significa tesouro real.É o que nos ensina George Rosen na obra Da polícia médica à medicina social como, assegurar a higiene do meio, regulando, inclusive, as edificações em solo urbano.
Fica claro que a sistematização da polícia médica resulta, especialmente, da profunda influência exercida – durante todo o século XVIII – pela filosofia do Iluminismo, que considera a razão o único caminho para a sabedoria. Assim, ao não admitir as explicações sobrenaturais para os fenômenos naturais, o Iluminismo promove a ampla aceitação da obrigação do Estado de controlar o exercício das práticas médico-cirúrgicas e farmacêuticas, combatendo o charlatanismo. Do mesmo modo, por buscar empregar o método científico na descrição das doenças e na determinação dos tratamentos, essa filosofia eleva o exercício das ciências médicas (como das demais profissões liberais) a uma condição de dignidade inimaginável na Idade Média, o que justifica plenamente a regulamentação estatal do ensino médico. E, também, ao advogar a possibilidade de planejamento da atividade estatal somada à exaltação crescente dos direitos naturais do homem – que permitiu consagrar mais atenção aos infortúnios das classes mais pobres – o Iluminismo estimulou a drenagem de pântanos, a abertura de canais, favorecendo a prevenção de epidemias.
A noção contemporânea de saúde pública ganha maior nitidez de contorno no Estado liberal burguês do final do século dezoito. A assistência pública, envolvendo tanto a assistência social propriamente dita (fornecimento de alimentação e abrigo aos necessitados) como a assistência médica, continuou a ser considerada matéria dependente da solidariedade de vizinhança, na qual o Estado deveria se envolver apenas se a ação das comunidades locais fosse insuficiente. Pode-se colocar nessa atuação subsidiária do Estado um primeiro germe do que viria a ser o serviço público de saúde. Entretanto, tomando-se o exemplo francês, verifica-se que a grande transição revolucionária – que passa tanto pela supremacia dos jacobinos quanto pela militarização napoleônica – retarda o início da instauração efetiva da assistência à saúde como objeto do serviço público, para o período conhecido como Restauração.
Por outro lado, a proteção da saúde é admitida no elenco das atividades do Estado liberal e recebe, portanto, um status constitucional. Isso significa que, apesar do empirismo que caracteriza a regulamentação das atividades de interesse para a proteção da saúde, as medidas de polícia administrativa relativas a tal proteção devem estar sob o manto da lei. Apareceram, assim, durante a Restauração (para ficar no exemplo francês) as primeiras leis que tratavam organicamente da higiene urbana, da noção de estabelecimento insalubre e do controle sanitário de fronteiras.44 Não se pode ignorar, contudo, que, tanto o controle do ensino e do exercício da medicina e da farmácia – profissões cuja regulamentação estatal era advogada há cerca de 50 anos – quanto a manutenção dos hospitais pelas comunas, também, receberam acolhida constitucional, uma vez que o Estado liberal e burguês daquele final de século legislou sobre esses assuntos45. Em suma, as atividades do Estado relacionadas à vigilância sanitária, durante a implantação do liberalismo, eram em tudo coincidentes com os interesses da burguesia vitoriosa: valorizando sobremaneira o individualismo que introduz um modelo de gestão comunal (os diversos estabelecimentos e casas de caridade são re-agrupados sob um estabelecimento público comunal, dirigido por uma comissão administrativa municipal, destinado exclusivamente aos doentes locais) dominante, limitá-lo apenas naquilo estritamente necessário à preservação da segurança individual, com o mais absoluto respeito à lei – condição do Estado de Direito.
Entretanto, é apenas a partir da segunda metade do século dezenove que a higiene se torna um saber social, que envolve toda a sociedade e faz da saúde pública uma prioridade política. São desse momento as primeiras tentativas de ligar a saúde à economia, reforçando a utilidade do investimento em saúde46. Por outro lado, inúmeros trabalhos de pesquisa conformes ao paradigma científico vigente revelam claramente a relação direta existente entre a saúde e as condições de vida. Assim, proteger a saúde das camadas mais pobres, modificar-lhes os hábitos de higiene, passa a ser um objetivo nacional, pois simultaneamente se estaria lutando contra a miséria que ameaça a ordem pública. A idéia de prevenção encontra, então, ambiente propício à sua propagação. Inicialmente fomentada por associações47, a prevenção se transforma tanto em objetivo político quanto social. Tratava-se de encontrar os sinais precursores da doença para evitá-la. Nesse sentido, a vacinação e a descoberta de Pasteur, com o posterior isolamento do germe, provoca uma verdadeira revolução na prevenção de moléstias, pois proteger contra a infecção permite simplificar a precaução. São criados os Comitês de Vacinação e se verifica que, politicamente, o risco de contrair doenças se sobrepõe ao da própria moléstia, transformando-a de episódio individual em objetivo coletivo, principalmente por meio da disseminação dos meios estatísticos na avaliação da saúde.
O início do século vinte encontra instaurada a proteção sanitária como política de governo. E são hierarquizadas três formas – hoje clássicas – de prevenção48: a primária, que se preocupa com a eliminação das causas e condições de aparecimento das doenças, agindo sobre o ambiente (segurança nas estradas, saneamento básico, por exemplo) ou sobre o comportamento individual (exercício e dieta, por exemplo); a secundária ou prevenção específica, que busca impedir o aparecimento de doença determinada, por meio da vacinação, dos controles de saúde, da despistagem; e a terciária, que visa limitar a prevalência de incapacidades crônicas ou de recidivas. O Estado do Bem-Estar Social da segunda metade daquele século reforça a lógica econômica, especialmente em decorrência da evidente interdependência entre as condições de saúde e de trabalho, e se responsabiliza pela implementação da prevenção sanitária. Instituem-se, então, os sistemas de previdência social, que não se limitam a cuidar dos doentes, mas organizam a prevenção sanitária. Inicialmente eles pressupunham uma diferenciação entre a assistência social – destinada às classes mais desfavorecidas e baseada no princípio de solidariedade e, portanto, financiada por fundos públicos estatais – e a previdência social, um mecanismo assecuratório restrito aos trabalhadores. Entretanto, exatamente porque a prevenção sanitária era um dos objetivos do desenvolvimento do Estado, logo se esclarece o conceito de seguridade social, que engloba os sub-sistemas de assistência, previdência e saúde públicas. Trata-se, portanto, de identificar a responsabilidade a priori do Estado. Assim, mesmo no que respeita aos estilos de vida, verifica-se um grande investimento estatal.
Os últimos anos do século vinte, contudo, revelam uma nova concepção da saúde pública, fortemente influenciada seja pelo relativo fracasso das políticas . Veja-se, por exemplo, o trabalho de Chadwick, E. Rapport sur la condition sanitaire des travailleurs en
Grande-Bretagne.
Tomando o exemplo francês, basta lembrar a Société française de tempérance, organizada em 1873,
para lutar contra o alcoolismo; a Société protectrice de l’enfance, organizada em 1865, militando pela
alimentação com leite materno; ou o Comitê de défense contre la tuberculose, criado em 1896.Veja-se, especialmente, a obra de Leavell & Clark, Medicina preventiva. (São Paulo, Mcgraw-Hill do
Brasil, 1976) Modelo adotado, por exemplo, na Constituição federal brasileira de 1988 (art.195) Considerem-se, por exemplo, os investimentos dos Estados contemporâneos na luta anti-tabagista.
estatais de prevenção, que não conseguiram superar os limites impostos pela exclusão social, seja pela constatação – agora científica – da importância decisiva de comportamentos individuais no estado de saúde. Por outro lado, o predomínio da ideologia neo-liberal provocou uma diminuição do papel do Estado na sociedade em favor dos grupos e associações e da própria responsabilidade individual. A evolução da organização dos cuidados relativos à AIDS – na grande maioria dos Estados contemporâneos – é um exemplo eloqüente dessa nova concepção. Com efeito, prevaleceu a idéia de que a proteção contra a doença é responsabilidade individual e que os grupos – de doentes ou de portadores do vírus ou de familiares ou amigos deles – devem organizar a prestação dos cuidados de saúde, ficando o Estado subsidiariamente responsável pelo controle da qualidade do sangue, fator importante na cadeia da causalidade, mas, certamente, não o único. Reforça-se, assim, o papel dos comportamentos individuais e não se questionam as estruturas econômicas e sociais subjacentes. De fato, o que se verifica, então, é que as estruturas estatais de prevenção sanitária passam a estabelecer suas prioridades, não mais em virtude dos dados epidemiológicos, mas, principalmente, em decorrência da análise econômica de custo/benefício. E isso, por vezes, acaba implicando a ausência de prevenção, elemento historicamente essencial ao conceito de saúde pública.