Entrevista feita a Revista Veja nº 32 de 10 de agosto de 2011
O chefe do setor de bioética do
governo americano diz que nenhum sistema público do mundo consegue atender em
igualdade de condições todas as pessoas necessitadas.
O médico Ezekiel Emanuel,
54 anos, é diretor de bioética dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados
Unidos (NIH). Com dois diplomas de Harvard (medicina e filosofia política),universidade
da qual foi também professor, foi assessor de dois presidentes (Bill Clinton e
Barak Obama), e escreveu 9 livros sobre os dilemas morais da medicina. Fora do
ambiente acadêmico, contudo, tornou-se mais conhecido pelo apelido maldoso de
“Dr. Morte”, cunhado por uma colunista de jornal que o acusava de estar, no
fundo, pregando a negação de tratamento pelo sistema públicos de saúde a velhos
e pacientes terminais. Filho de um imigrante israelense, ele é irmão de Rham
Emanuel prefeito de Chicago e ex-chefe de gabinete de Barak Obama. Em São
Paulo, onde esteve na semana passada (01/08/2011) para uma conferência médica,
Ezekiel Emanuel concedeu a seguinte entrevista a Veja.
O
senhor tentou realmente instituir no serviço de saúde americano uma comissão
para decidir sobre a eutanásia de pacientes idosos e pobres?
Durante
meu mandato como conselheiro do presidente Barak Obama, escrevi um artigo para
a revista científica The
Lancet que
discorria sobre quais pacientes deveriam ser privilegiados pelo sistema de
saúde em situações de falta aguda de recursos. Referia-me a situações extremas,
como a vacinação em casos de pandemia, quando faltam vacinas para todos e é
preciso decidir quem será imunizado ou não. Nessas condições, a recomendação do
governo nos EUA e a de outros países é que se favoreçam os mais jovens. O mesmo
acontece quando você tem apenas um fígado para transplante, mas três pacientes
precisam do órgão com urgência, outro caso mencionado em meu texto. Quem será
beneficiado? Uma criança de 2 anos, um jovem de 20 anos ou um idoso de 70 ? Qualquer
pesquisa de opinião, em qualquer lugar do planeta vai mostra que 70% da
população, seja americana, seja brasileira decidirá pelo jovem de 20 anos. É
eticamente defensável. Nesse caso a maioria do publico concorda comigo. A
filosofia também. Não estou nem um pouco constrangido por ter escrito isso. Na
medicina muitas vezes é preciso fazer escolhas difíceis. Isso acontece com
muito mais freqüência do que as pessoas imaginam ou querem crer.
O
senhor está dizendo que o sistema de saúde escolhe quem vai viver, quem vai
morrer?
Isso
ocorre nos países mais pobres, sem infra-estrutura. Nos EUA, esse tipo de
situação não existe no dia a dia da medicina. Só temos racionamento em
situações limite. Não há como negar que, em relação ao transplante de fígado, há,sim
um problema a ser resolvido. No passado a preocupação era o numero limitado de
maquinas de diálise. Chegou a ser formado um “Comitê de Deus”, composto de
médicos que decidiam quem seria tratado. Isso não existe mais. No restante da
saúde americana, não há racionamento.
Hoje,
o gasto do sistema de saúde por pessoa
nos EUA, em relação ao PIB per capta, é um dos maiores do mundo. É uma vantagem
e tanto. Não temos de decidir para onde vão as verbas. Talvez os médicos
brasileiros tenham de tomar decisões difíceis com mais freqüência, infelizmente.
Quando os hospitais públicos não dispõem de vagas suficientes nas UTI’s para
atender a população, é preciso, decidir quem ocupará o leito da forma mais
ética e moral possível.
Como
é possível decidir que uma vida humana tem mais valor que outra?
Existe,
sim, um principio ético de igualdade segundo o qual todas as vidas humanas têm
o mesmo valor e merecem o mesmo tratamento. Concordo com isso. O problema é que
não há somente um principio ético. Existe uma lista enorme de outros
princípios. Para ser ético de quando se trata da saúde da população de um
país, é preciso salvar o maior numero de vidas possível, não pensar em salvar
uma vida apenas.
Outro
principio estipula que é preciso salvar pacientes com mais anos de vida pela frente.
As pessoas são muito simplistas ao tratar de um assunto tão complexo.
A
tecnologia permite manter vivos milhares de pessoas com pouquíssimas chances de
recuperação. O senhor é a favor da eutanásia nesses casos?
Sou
oncologista. Durante meus anos de pratica médica, tive de vivenciar, centenas
de vezes, situações em que não existe tratamento capaz de diminuir um tumor e
em que o paciente vai morrer
inevitavelmente. Nesses casos, acho que é dever do médico conversar com a
família e decidir o que é melhor para garantir ao paciente um fim digno, sem
sofrimento, como tornar menos dolorosas as ultimas semanas ou meses. Só uma
pessoa totalmente insensível negaria a um paciente o direito de morrer quando a
vida se torna pior que a morte. Apesar de pensar assim, sou totalmente contra a
legalização da eutanásia, o que é bem diferente. Isso abriria precedentes para
a ocorrência de milhares de mortes desnecessárias.
Por
que o senhor é contra a legalização da eutanásia?
Por
três razoes principais. Primeira, porque, num mundo cada vez mais cheio de
velhos, pessoas mal intencionadas podem se apropriar de uma legislação que
permite a eutanásia para matar quem ainda quer e tem o direito de continuar
vivo. Segunda, porque, para muitos médicos, é mais fácil aplicar uma injeção em
um paciente à beira da morte do que tratá-lo. É emocionalmente exaustivo, um
verdadeiro fardo para médicos e outros profissionais de saúde, acompanhar
diariamente um paciente assim e presenciar o sofrimento de seus familiares.
Terceira, porque a eutanásia não é um assunto relevante para a maioria da
população. Basta olhar a experiência da holandesa. Na Holanda, onde a eutanásia
é legalizada, só 3% das pessoas morrem dessa forma.
Os
outros 97% dos pacientes não estão interessados nisso. É preciso gastar energia
para criar uma legislação que beneficie a vida dos 97% que querem continuar
respirando, não o contrario.
O
senhor é contra a eutanásia mesmo quando se trata de pôr término a uma
existência em estado vegetativo ou a dores insuportáveis, que droga nenhuma é
capaz de eliminar?
É
um equivoco achar que a maior parte das pessoas que pedem para morrer está
sofrendo imensa dor. A maioria delas está deprimida ou perdeu as esperanças.
Para essas pessoas, melhor do que dar uma injeção mortal é tratá-las com ajuda
psiquiátrica, terapia, antidepressivo e medicamentos adequados.
O
que fazer com pacientes em coma irreversível?
Muitos
médicos em diversos países, já optam por interromper o tratamento em casos de
pacientes em estado vegetativo. Um médico responsável pode decidir se é hora de
desligar os tubos ou parar com a medicação.
Isso
não é o mesmo que dar uma injeção letal em uma pessoa a beira da morte. Não é
eutanásia. É uma medida ética, que garante um fim digno.
Os
EUA são o país que mais gasta em saúde. Apesar disso, o sistema de saúde
pública americano é considerado inferior em comparação ao de muitos países
industrializados. O que há de errado?
Quando
os países enriquecem, eles passam a gastar mais com saúde. Na década de 30, os
EUA gastavam 3% do PIB em saúde e as pessoas viviam até os 60 anos. Atualmente,
o país dispende cinco vezes mais, algo em torno de 2 trilhões de dólares por
ano. Isso garante assistência a 200 milhões de americanos, cuja expectativa de
vida beira os 80 anos. A projeção é que os gastos com saúde dupliquem ou
tripliquem em três décadas. Não vejo, problema nenhum em gastar dinheiro com
saúde publica. O problema é gastar e distribuir essa montanha de dólares de
forma eficiente. É preciso adaptar o sistema americano e outros sistemas de
saúde a uma nova realidade. A população mundial está envelhecendo. Isso implica
mais doenças crônicas, mais tratamentos, mais internações e, obviamente maiores
gastos.
Como
um sistema de saúde pode lidar com o envelhecimento da população?
Sou
otimista em relação ao futuro da saúde tanto nos EUA quanto em outros países,
como o Brasil, mesmo com o aumento da longevidade. O envelhecimento da
população por si só tem pouco impacto sobre o custo do sistema. Nos EUA, as
mudanças demográficas respondem por apenas 2% no aumento total dos gastos com
saúde. O que realmente pesa no custo do sistema de saúde americano é a necessidade
de acompanhar os avanços tecnológicos. Novas técnicas, equipamentos e remédios
encarecem em 40% a 60% o custo dos tratamentos. No decorrer da próxima década, porém,
a tecnologia médica tende a ficar menos onerosa, da mesma forma que ocorreu com
os televisores e mais recentemente com os telefones celulares. Até que isso se
reflita no custo dos tratamentos é vital investir na prevenção. Por isso as
campanhas contra o fumo, a obesidade e a favor de uma vida mais saudável são
imprescindíveis neste período de transição. A médio e longo prazo, as
tecnologias vão ajudar a reduzir o custo da saúde, aumentando o grau de
segurança dos hospitais, diminuindo a incidência de erros médicos e prevenindo
mais eficientemente as doenças crônicas.
O
que um governo deve oferecer à população em termos de assistência médica?
Nenhum
sistema público de saúde consegue solucionar todos os problemas e atender a
todas as pessoas. O estado tem o dever de fornecer a assistência básica de
forma eficiente. Ou seja, prover hospitalização em casos graves, estabelecer
programas de prevenção, dar vacinas. Mas quem não quer dividir o quarto de um
hospital com outras pessoas tem de pagar por esse luxo. Quem quer se tratar com
medicina alternativa também tem de enfiar a mão no bolso. Para mim isso é
eticamente aceitável. O problema é que as pessoas olham o tratamento que os
ricos conseguem ter e acham que o governo tem a obrigação de fornecer a mesma
qualidade e diversidade. Nunca foi e nunca será assim. Os ricos sempre vão ter
mais do que os pobres porque eles podem pagar. Não podemos definir o que é
ético e moralmente aceitável em um sistema de saúde com base no tratamento que
os ricos conseguem obter. Para saber se um governo cumpre sua obrigação moral
em relação a saúde, deve-se perguntar o que é garantido pelo governo aos
pobres. Se os pobres têm direito ao básico, de forma eficaz, então o sistema
cumpre o seu papel.
A
constituição brasileira estabelece que a saúde é um direito do cidadão e um
dever do estado. O senhor considera esses enunciados realistas?
Os
economistas dizem que tudo que é gratuito acaba provocando abusos. É uma regra
econômica básica. Quando se estipula que a saúde é um dever do estado, qualquer
cidadão pode pleitear na justiça tratamentos caros e dispendiosos que não são
cobertos automaticamente pelo sistema público. Quem vai aos tribunais tem muita
chance de ganhar. Que juiz não se comove diante do sofrimento de um doente? O
problema é que isso não é ético, não é justo com outras pessoas que dependem do
mesmo sistema. Como determinar que parte dos recursos destinados à compra de
medicamentos, por exemplo, pode ser redirecionada para tratamentos caros
autorizados pela justiça? É uma questão muito delicada.
Não
sei o que os governantes brasileiros estavam pensando quando inseriram isso na
Constituição.
Qual
é seu maior desafio atual no cargo que ocupa?
Durante
os 8 anos do presidente George W. Bush, o governo americano cortou as verbas
para pesquisa de células-tronco- embrionárias. Conseguimos reverter essa
situação em 2009, o que foi uma grande vitória para todos os americanos. Alem
dessa questão, que já foi resolvida, acredito que um dos desafios é tornar mais
eficiente a prevenção da malária e da AIDS em países da África e da Ásia com os
10 bilhões destinados anualmente para esses fins. Há quem pense que americanos
são muitos conservadores e que, todos os dias tenho de lidar com manifestantes
contra aborto ou o uso de células-tronco embrionárias. Isso é um equivoco. Meu
maior desafio é gastar bem o dinheiro público para melhorar a vida dos outros.
Gabriela Carelli
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