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terça-feira, 14 de setembro de 2010

Por Uma Sociedade Radicalmente Democrática: Utopia?

 
 O documentário Utopia e Barbárie, do cineasta Silvio Tendler, é um mergulho na história recente do Brasil e do mundo, do qual o espectador emerge com alguma imunidade contra o risco de perder a esperança e de ver sonhos de igualdade, respeito e justiça desaparecerem assolados pelos acontecimentos do século 20. Lançadoem abril de 2010, o filme percorre 15 países e aborda, em depoimentos e imagens colhidos ao longo de 20 anos por Tendler, fatos como o Holocausto e o AI 5, a bomba de Hiroshima e a queda do Muro de Berlim. Nessa revisão dos grandes eventos políticos e econômicos pós-Segunda Guerra, está em discussão o fim das utopias que inspiraram a geração sonhadora e libertária dos anos 1960 e a emergência de novas utopias, sintonizadas com a globalização. Utopia e Barbárie conquistou prêmios no Brasil e no exterior, entre eles, o de melhor direção e montagem. O filme impressionou o sanitarista Gastão Wagner de Sousa Campos, cuja trajetória em prol da saúde pública é movida a utopias. Foi a partir dessa inspiração que ele preparou, a pedido de Radis, o texto abaixo.

Por uma sociedade radicalmente democrática: utopia?
Gastão Wagner de Sousa Campos*

O que mais me impressionou ao assistir ao documentário Utopia e Barbárie, de Sílvio Tendler, foi perceber sua alegria, seu orgulho, por haver participado dos movimentos de esquerda que lutaram pela democracia e pelo socialismo na segunda metade do século 20. Um elemento constitutivo de sua história, de sua personalidade, que ele não recusa ou tampouco louva de forma acrítica. Compartilho o mesmo sentimento ao examinar minha história de vida, ainda que meu nicho principal de militância tenha sido o movimento sanitário. No filme, vários depoentes relatam o prazer absoluto que foi ser ativista em 1968, ou experimentar a invenção de uma via pacífica para o socialismo no Chile, com Salvador Allende. Referem-se a “catarse coletiva”, “orgasmo da história” e a situações “orgásticas”. E isto apesar das derrotas, apesar de haverem constatado que dentro de nossas utopias também germinavam formas de barbárie. A reforma sanitária é parte desse fluxo, é parte da vontade de gente iluminada que ousou pensar um mundo
solidário e justo. Nossa utopia, contudo, era mais modesta do que a daqueles revolucionários — utopia concreta (Karel Kosic, o filósofo obrigado a trabalhar como coveiro pelos estalinistas). SUS, democracia e saúde para todos. Um projeto que, em larga medida, se realizou. Com o SUS criou-se um espaço existencial onde milhares de pessoas (eu entre elas) construímos sentido para nossas vidas, envolvendo-nos com problemas e afetos para além de nós mesmos e do narcisismo contemporâneo. A reforma sanitária também teve seus momentos de epifania coletiva: a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, ainda quando a 10ª, 11ª e 12ª tenham produzido mais tédio, ressentimento e dissensão do que entendimento e energia; o porre democrático da gestão Arouca na Fiocruz; o delírio criativo do povo da saúde de Santos, de Campinas, e de tantos outros municípios, na alvorada do SUS, entre 1989 e 1992. Há um traço, entretanto, que distingue o movimento sanitário de outras iniciativas de caráter espasmódico — ainda quando a contração dure meses ou alguns anos. Criaram-se, no Brasil, movimentos de mudança duradouros, os quais têm permitido prorrogar-se o prazer desfrutado por muitos daqueles que fazem parte de um esforço coletivo de natureza utópica. Refiro-me à possibilidade criada pelo SUS de combinarmos trabalho, sobrevivência, com militância social e política. Quem batalhou para se construírem novos paradigmas, novas fronteiras de conhecimento e de práticas, novas instituições, sabe do que estou falando. Da sensação inefável de somar-se à humanidade e ao planeta, e não agoniar-se por dominá-los ou destruí-los. Em saúde mental, DST/Aids, atenção primária, humanização, educação e promoção à saúde, pessoas, milhares delas, perseguem a utopia de inventar-se uma nova ordem social, uma nova organização para a humanidade. No filme de Silvio Tendler, o cineasta Pontecorvo resume o que considero uma descrição da utopia para o terceiro milênio: “Progresso é tudo que reduz o poder de uma pessoa sobre a outra, de um grupo sobre o outro”. Essa é a essência do bem estar; ou melhor, o caminho pelo qual poderemos, ou não, alcançar uma vida menos áspera do que a atual. Amigos, o filme de Silvio Tendler é uma viagem racional e psicodélica pela história. Embarquem nessa, até porque o único efeito colateral será permanecerem reflexivos por alguns dias.

* Professor titular da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).

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